Texto da semana

Os peruás da noite

Thamiris Delazari de Carvalho- Turma XIII da FDRP

Era final de tarde. Estourei uma pipoca e fui para a varanda esperar o véu da noite cobrir o céu, por hora marejado de tons alaranjados que eram sutilmente adentrados por nuances de azul escuro. Nesse dia, eu esperei anoitecer, esperei que o céu inteiro se uniformizasse em um único breu. Nesse dia eu esperei anoitecer. Não procurei a Lua, cujo dia começa em nossa noite, nem reparei nas estrelas, apesar de admirar céus estrelados, apenas me detive à noite, que eu via anoitecer.

Enquanto comia a pipoca na varanda da minha casa, sozinha, a vizinha da frente estendia roupas no varal para secarem com o vento da noite. Me pergunto por que ela não estende suas roupas durante a manhã ou durante a tarde. Os ventos do dia são ótimos, são fortes, quentes e secam as roupas como nunca se viu. Mas os ventos do anoitecer, esses sim lavam nossos pensamentos, os levam longe para depois retornar já diferentes.

O vizinho do lado chegava com seu carro, alguém assistia à televisão na casa da frente, e….

Ai! Acho que mordi um peruá! 

Um passarinho estranho rondava o céu, podia estar atrasado para se entranhar nos galhos das árvores da rua, mas não, passou pela vegetação e não parou, afinal, era livre.

Não há cenário de filme mais propício ao entrelaçar de reflexões do que a noite. O dia, esse é belo, renova nossos horizontes, mas a noite… essa sim é sábia conselheira. E ainda, nos ilude para acreditarmos que somos conselheiros também, conselheiros de nós mesmos. Então fiquei ali, assistindo àquele filme, comendo a tal pipoca, enquanto alguém passava divagando sobre as pedrinhas da rua, e cachorros gritavam nos morros distantes.

Minha rua é de pedrinhas, uma das últimas ruas do bairro que ainda tem esse charme. E como é bom ver o verde nascendo entre elas. Da minha varanda eu vejo essas pedrinhas, de noite, mais misteriosas, de dia, mais reluzentes. Gosto da minha varanda, de sentir o barulho do vento, ver o calor que atravessa as nuvens e tocar o aroma das cores da escuridão.

Naquela noite, não lavei as vasilhas sujas que usei para estourar a pipoca. Lavá-las seria confirmar ao dia, que a noite já se encerrava em minha ideia, e que ele poderia chegar para levar os pensamentos que cultivei sentada sozinha na varanda da minha casa. Assim como um filme difícil de digerir deixa lembranças, uma pipoca cheia de peruás também se mostra indigesta, custosa de esquecer.

 Porém, eu tinha esperado anoitecer. Nem conseguia piscar muito na tentativa de acompanhar, pelo máximo de tempo, o desenrolar das cores do céu, que culminavam no cenário noturno.  Esse filme não se mostrou nada tedioso e eu não podia desperdiçar um momento sequer do tempo que não volta mais e das cores que só existiam por uma fração de suspiros. Então deixei as vasilhas da pipoca, que comi sozinha na varanda da minha casa, para serem lavadas no dia seguinte. Ao lavá-las não queria me lembrar dos peruás, únicos capazes de me tirar daquele transe antagonicamente desperto no qual me aprofundava, mas queria lembrar daquela noite. A noite que eu vi anoitecer.

Ao acordar pela manhã, rumei à cozinha na incumbência de lavar aquelas memórias salgadas, mas não encontrei nenhuma vasilha. Não estavam no fogão, não estavam na pia, não estavam no escorredor. Alguém já as tinha lavado, secado e guardado. E como um estouro de um milho de pipoca, lá se foram minhas expectativas de recordar aquele filme que eu tinha visto na noite anterior sozinha e na varanda da minha casa.

Algumas lembranças não são milhos comuns, algumas lembranças são peruás. Se recusam a estourar, se recusam a ir embora. Nos deixam em alerta, e nos despertam em momentos inoportunos. Ah!! Que saudade de um peruá, que saudade da noite que eu vi anoitecer.

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